Lembrar que a água circula por debaixo das ondas
A água é cristalina na superfície, mas torna-se opaca conforme nos aprofundamos. Todo adensamento é, então, uma forma de retirar a transparência das coisas, de não revelá-las completamente. Todo adensamento é uma forma de dar sustentação as coisas, de fazê-las se moverem na superfície pelo que embaixo se faz mistério.
A onda é apenas o resultado do grande trabalho do mover-se das águas. A onda é o que se mostra aparente de seu trabalho. A onda é água, mas não toda a água. A onda é a sobra de uma pulsação, aquilo que dela resulta e nos convoca a ver por baixo.
Em sua primeira individual, somos chamados por Samantha para admirar o quebrar da onda do oceano que constituí sua pesquisa. Podemos dizer, inicialmente, que o seu interesse inquieta-se em questões da pintura. Todavia , o que encontramos não é o que se entende normalmente sobre esses termos. Tomemos isso, apenas como ponto de partida.
Existe em sua prática uma economia radical. Ela reduz ao máximo os elementos que constituem seus trabalhos. Da pintura tradicional ela apenas faz uso do chassi e do tecido, seja ele lona ou linho. São os elementos que dão sustentação a pintura, construindo a tela. Literalmente, são o que a suportam, que a tornam possível, servindo de base para a sua realização. Ao invés de criar uma ilusão de espaço com esses materiais, de utilizar a pintura como uma janela, ela os transforma em casa, em uma construção tridimensional. Uma habitação para o olhar, não só pelo seu caráter arquitetônico, mas pelo próprio diálogo íntimo que trava com o local onde se instala. Em muitos casos ela chega a inverter a relação entre esses elementos, colocando a própria lona como sustentação do chassi a partir de tensionamentos, amarrações ou sobreposições de camadas de tecido.
Nesse sentido, o trabalho de Samantha, ao mesmo tempo em que apoia-se em materiais específicos da pintura, explorando as características próprias de um suporte para além da criação de uma ilusão, de uma imagem que não estava lá, lança-se para além. Seu trabalho transita entre os meios, pois parte da pintura, e por isso sempre identificamos suas questões latentes, para se estabelecer no campo do objeto, da escultura, da instalação e até mesmo da arquitetura. Sendo assim, seus trabalhos estabelecem um trânsito ininterrupto entre sentidos próprios desses materiais e de suas configurações, assim como entre os meios artísticos, diluindo e reconstruindo sentidos.
Uma outra ponta de seu processo econômico é o reaproveitamento dos materiais. Partes de obras podem incorporar novos trabalhos, assim como não há a produção de restos. O exemplo máximo disso é o novelo que a artista vem criando a partir das linhas retiradas dos tecidos no processo de desfiá-los, um processo que parece reencenar Penélope.
Muitas vezes, após desfiar a tela, ela também refaz a trama, não buscando a unidade inicial, pois ela reconhece que seria um esforço vão e sem sentido, mas, justamente, retrama de uma outra maneira, trançando os elementos. Surge um certo antropomorfismo na estrutura, evocando tanto o cabelo como a coluna (rigidez ou maleabilidade).
Há, na base de seu processo de investigação uma prática destrutiva, não só no sentido conceitual de desconstrução do entendimento da pintura. Samantha desfaz fisicamente a totalidade da tela, de seu tecido. Desfiando, deixa surgir a luz, o outro lado e faz aparecer pequenas imagens a partir dos padrões que se formam. É uma operação construtiva negativa, pela retirada de elementos e não pelo acréscimo.
Diferente de Lucio Fontana, não temos a agressividade de um gesto que perfura, mas a delicadeza de uma ação que exige tempo. Esse último dado é essencial em seu trabalho, pois seus processos são prolongados, não só na feitura das peças, mas no próprio embate com as possibilidades que eles oferecem a cada novo trabalho. Basta saber que Samantha vem desenvolvendo essa pesquisa há aproximadamente quatro anos e ainda se encontra longe de um esgotamento.
O tempo prolongado da manufatura de algo, beirando a obsessão, crê-se, é um modo de se imprimir no objeto. Há quase uma dimensão do autorretrato, pelo que cada objeto representa do próprio trabalho da artista enquanto tempo e energia investidos, tornando-se, deles, simulacro.
Por outro lado, o caráter destrutivo, nada mais é do que um modo de transformação das coisas a partir de um tomar para si. Destruir é um modo de se apropriar. Nós destruímos o que mais desejamos, como modo de incorporar para nós o seu funcionamento ou o conhecimento de suas estruturas. Seu trabalho com os sachês de açúcar é um exemplo disso. Essa série surgiu de um gesto simples da artista, de desnudar os sacos deixando apenas um retícula transparente em que podemos ver seu conteúdo. De fato, poderíamos entender seu trabalho como a tentativa de desnudamento da pintura.
No processo de Samantha há uma troca, ao mesmo tempo em que ela passa para o objeto, o objeto passa a si, como no próprio movimento do revolver das águas, da troca constante entre exterior e interior, entre o fazer e o desfazer, entre a matéria e a sua forma.
Texto curatorial da exposição “Lembrar que a água circula por debaixo das ondas”
André Vechi Torres, 2016